Equipa

Bruno de Almeida
Realizador
Bruno de Almeida é um dos mais prolíficos nomes do cinema nacional. Nascido em Paris, mudou-se para
Nova Iorque nos anos 80. A sua primeira curta-metragem, "A Dívida", foi premiada em 1993 no Festival
de Cannes. Um realizador de processos criativos ágeis, desenvolveu uma obra sólida, feita de impulsos entre o documentário e a ficção. Filma os mais diversos universos, como os outsiders de Nova-Iorque em “On the Run” e “The Collection”; o boxe no “Bobby Cassidy”; o fado em “The Art of Amália” e “Gravações de Camané”; a cidade sobrevivente no “The Lovebirds”; o humor satírico rock de “O Candidato Vieira” e “Ena Pá 2000”; as artes plásticas em “6=0 Homeostética” e a dança contemporânea em “O Rei No Exílio”. É também músico, colaborando num projecto com os Dead Combo.
ENTREVISTA A BRUNO DE ALMEIDA
“É um filme sobre a mentira”, diz Bruno de Almeida, o realizador que durante dois anos trabalhou com Frederico Delgado Rosa, neto e biógrafo de Humberto Delgado, para escrever o argumento de “Operação Outono”. Depois, mais de dois anos de produção. O filme aí está.
Ana Sousa Dias: Nasceu no ano em que Humberto Delgado foi morto, 1965. O que o levou a fazer este filme?
Bruno de Almeida: Eu tinha nove anos no 25 de Abril e o meu pai levou-me à rua. Assisti à cena de tiros na rua António Maria Cardoso, onde era a sede da PIDE. Vivi esses momentos entre o real e o imaginário, para um miúdo havia naquilo um lado de jogo e na altura não percebi bem. Tinha a consciência do que era viver em ditadura e sabia que havia coisas que não podia dizer na escola. Depois obviamente mais tarde percebi o que eram as circunstâncias políticas, o que isso queria dizer. Quando li a biografia de Humberto Delgado do Frederico Delgado Rosa, pensei que era um filme que tinha de ser feito, independentemente de ser eu a fazê-lo. A história nunca tinha sido bem contada, houve uma série de mentiras sobre a forma como o Humberto Delgado foi assassinado, na farsa do julgamento no tribunal de Santa Clara. Dramaticamente, tinha todos os elementos para ser um filme provocador e interessante. Nem que fosse como um estudo sociológico das pessoas e da época: como éramos nessa atura, como somos agora? Não há muitas diferenças, em termos de corrupção e de tribunais, continuamos numa sociedade arcaica.
ASD: Optou por uma estética que associamos a esse tempo, até filmou em 16 mm. Porquê?
BA: Decidi filmar no estilo da época e com um conceito anti-estético. Não há nenhum plano “bonito” ou composto para ser bonito. É um cinema objectivo, no sentido em capta as coisas mas não tem indicações subjectivas de um personagem ou de outro. O ponto de vista não é do Humberto Delgado nem dos pides, é abstracto aos personagens. Quase como uma câmara que representa aquilo que eu considero ser a verdade do momento, sem dizer “estes são os bons, estes são os maus, isto está correcto ou isto está incorrecto”.
ASD: Escolheu aliás alguns actores com quem o público tem à partida empatia, como o Nuno Lopes, o Marcello Urgeghe ou o Camané.
BA: Sim. O elenco é magnífico. E o estudo dos personagens foi o mais aprofundado que conseguimos fazer, tentando chegar à verdade daqueles personagens sem os diabolizar. O filme tenta mostrar como é que o sistema, desde a polícia aos tribunais, funcionava naquela época. Um filme nunca é um documento histórico mas sim uma dramatização. Mas fizemos muita pesquisa e tentámos ser rigorosos. O Frederico Delgado Rosa, que escreveu o guião comigo foi o nosso consultor histórico. Ele esteve sete anos a investigar o caso Delgado e escreveu a biografia com um rigor extraordinário. É dele quem vem a descoberta mais impressionante: até há pouco tempo, pensava-se que Humberto Delgado tinha sido morto a tiro, e na realidade não foi, como confirma a autópsia espanhola e as várias pistas que forma descobertas no local do crime. Foi morto barbaricamente com seis pancadas de um objecto metálico. Agora, toda a gente sabe que a PIDE matou o Humberto Delgado, isso nunca foi uma dúvida. Mas mantém-se uma grande questão: quem deu a ordem para matar? Como no caso do Klaus Barbie, o assassino de Lyon. Quem é culpado - ele, as SS, Hitler? O filme deveria ter a função de nos fazer pensar sobre quem tem as responsabilidades máximas. E neste caso é Salazar, ponto final. Nada se passava sem ele saber. Se a PIDE foi responsável por tantas mortes e torturas durante os 48 anos do Estado Novo, a mais longa ditadura da Europa, não é difícil acreditar que o Presidente do Conselho tenha dado a ordem para se livrarem de Humberto Delgado, provavelmente logo em Maio de 1958, depois da celebre tirada do “obviamente demito-o”. Entretanto, a Revolta de Beja, a Crise Estudantil e o início da guerra em África em 1962 fez com que Salazar mudasse os elementos de o topo da PIDE. Salazar colocou lá o grupo constituído pelo Major Silva Pais, o director, Barbieri Cardoso, o subdirector e segundo dizem quem verdadeiramente controlava a organização, e Álvaro Pereira de Carvalho, chefe dos serviços de Informação. Das primeiras operações que supostamente começaram a planear foi a Operação Outono, nome de código da operação para “calar” o General Humberto Delgado. Foi esta a operação que culminou na cilada de Badajoz, onde a 13 de Fevereiro de 1965, assassinaram brutalmente Humberto Delgado e a sua secretária Arajaryr Campos. A operação, teve contornos que foram de grande trapalhada, com vários testemunhos e pistas mal escondidas. E a polícia espanhola não teve dificuldade em rapidamente descobrir que uma brigada da PIDE estava por detrás do crime cometido em Los Almerines, perto da fronteira portuguesa. As pessoas acham que a PIDE era muito eficaz, e provavelmente era, com os seus 20 mil informadores, mas ao mesmo tempo faziam grandes disparates e havia aquelas divergências e pequenos ódios entre os agentes das brigadas que queriam todos estar perto do poder.
ASD: É por isso que dá mais importância ao julgamento dos envolvidos, que durou de 1978 a 1981?
BA:O julgamento é muito interessante, porque todos os pides mentiram. O filme é, antes de mais, um filme sobre a mentira. A questão que coloco em relação ao julgamento é que nunca se chegou a Salazar. Ao não condenar ninguém excepto Casimiro Monteiro, a assassino profissional que fez parte da brigada e que fisicamente executou Delgado, está-se a ilibar toda a cadeia de chefia. Perante a História, legalmente, eles não são culpados porque forma ilibados na farsa que foi o julgamento de Santa Clara. No limite, este processo poderia ser reaberto. Quem é o culpado perante a História? Não tenho dúvidas de que é o Salazar. Não há um documento escrito, gravado, a dar a ordem, mas qualquer pessoa percebe que ele deu ordem para matar. E também é absurdo dizer que Silva Pais não estava ao corrente. O director da PIDE seria o maior idiota da História se não estivesse ao corrente da operação. Enfim, foi um processo macabro que vendo á distância dos dias de hoje nos pode fazer pensar em como a justiça nunca foi feita. E tantas vezes não é, sobretudo aqui.
ASD: A história passa-se em cinco países diferentes. Teve problemas complicados nas filmagens?
BA:Tivemos a colaboração da Câmara de Lisboa e do Exército. O julgamento é filmado no Tribunal de Santa Clara onde de facto decorreu. Foi exactamente com as mesmas mesas, as mesmas cadeiras, no mesmo espaço. Bem como a reconstituição da sede da Pide que conseguimos fazer no prédio traseiro da verdadeira sede da Pide, que era na Rua António Maria Cardoso. Até conseguimos as máquinas de escrever da PIDE. Tivemos o total apoio do Exército na cena da tomada da PIDE durante a revolução de Abril, com militares de armamento. E os espanhóis ajudaram-nos muito em termos logísticos o que nos proporcionou rodar, por exemplo, em Los Malos Passo, local onde foram enterrados os corpos.